sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Não Posso Parar (conto)



Não posso parar.

Andava apressadamente sobre a calçada de concreto liso, a chuva deixava seus passos arriscados e escorregadios. Ela abraçava a bolsa de papel como se fosse ali que estivesse contida sua única chance de salvação. Os postes lançavam sobre a rua escura uma luminosidade amarelada e nada eficiente, o que deixava muitos pontos no trajeto totalmente enegrecidos. Os cabelos estavam ficando pesados pelo acúmulo da chuva fina que descia sobre ela, e o casaco já não podia impedir que tremesse de frio.
Os passos eram vacilantes sobre as sandálias de salto médio, o constante movimento de olhar para todos os lados prejudicava a excelência do andar, o que a levou a estar prestes a se chocar com um poste ou uma árvore vez ou outra. Já tropeçara num ressalto do pavimento mais de uma vez, e em todas elas achou que seria o fim.
A água da chuva misturada ao suor.
As lágrimas varrendo as gotas de água nas faces suaves.
Os olhos vidrados, avermelhados, e escravizados pela constante vigilância.
Ela ouvia.
Ela via.
Mas estava lá?
Em cada beco escuro havia a silhueta negra, recortada pelo brilho distante d’alguma lâmpada amarela. Cada poste lhe sussurrava, cada janela a observava, cada passo que dava parecia ser acompanhado por algum outro, mais pesado, mais bruto, mas raivoso, às suas costas. Sentia seu cabelo pesando e virava rápido o rosto para o outro lado, buscando surpreender quem o tocava, mas eram mais rápidos que ela. Voltava novamente o rosto e do outro lado ele também escapara.
O choro, acompanhado por uma súplica calada, apenas por escapes de voz evidenciada. Por choramingos, burburinhos, ganidos e sufocos.
O controle sobre as mãos era prejudicado pelo tremor excessivo, vez ou outra o pacote ameaçava escorregar e se lançar no chão molhado.
Vinha alguém de frente.
Andava devagar, sob a sombra de um guarda chuva.
Ela estacou.
Indecisa se voltar para de onde a perseguiam ou ficar parada se deixando alcançar pelos dois lados. Quando parou, seus olhos foram chamados para o alto.
As casas.
Altas, manchadas de chuva e sol, com janelas profundas nas fachadas.
Se dobravam, se fechavam, se estreitavam.
Engolindo o céu nublado e escuro, entortando as retas, fazendo barulho em seus ouvidos.
Ela irrompeu em gritos e se abaixou na calçada.
A mulher passou sob o guarda chuva, contornando-a a alguns passos de distância, passando pelo asfalto em vez de pela calçada. Uma expressão de pena e rejeição na mesma cara.
Quando o guarda chuva passou, ela olhou para cima, e voltou a andar. Então as casas retrocederam.
Não... não posso parar.
Os sussurros vinham agora mais de perto, os vultos nos becos começaram a ficar ao lado dos postes, embarreirando seu caminho. Ela parou outra vez, as casas voltaram a se fechar. Voltou-se para o outro lado, e eles corriam de um lado ao outro da rua, rápidos como passarinhos. Surgiam aqui e logo estavam ali. Se viam lá e subitamente estavam bem em frente.
Ela gritou e recuou.
Eles estavam atrás, estavam à frente.
Nas janelas, nas escadas, nos carros, nos telhados, nas árvores.
No seu ombro.
- Não! Sai de perto de mim!
Pisou fora da calçada, eles se aproximavam.
- Fica longe, sai!
Uma luz forte, uma buzina e uma freada brusca e derrapante.
Ela teve suas pernas atingidas pelo para-choque, rolou sobre o capô e rachou o para-brisa. Então rolou de volta e caiu no asfalto molhado.
Eles estavam em todo canto.
Ao redor.
Se aproximavam, tocavam nela, batiam em suas faces e a chamavam.
Ela não conseguia se mexer, não conseguia reagir.
Apenas via.
Ela apenas ouvia.

O Cantarolar do Zelador (conto, ou crônica... sei lá)



O Cantarolar do Zelador

Era uma noite quente, a sensação de quando se andava através do ar úmido e abafado era a de estar atravessando o sopro de uma boca, por mais bizarro que isso possa soar. Parecia que a escuridão do céu estava mais densa, parecia que o negrume da noite descia do alto e comia as beiradas da luz dos postes. Não se via estrela, ou forma de nuvem, apenas o manto negro. Por ser uma ilha, o isolamento trazia a impressão de termos sidos pinçados da malha da realidade e então despejados em algum recipiente de dimensão alternativa. E aquela sensação, a repugnância pela luz artificial que rodeava por todo lado, o desejo inconcebível de estar em outro lugar, de sentir qualquer coisa minimamente confortável.
Fora isso, havia a destruição. A lama, as algas carregadas, os peixes mortos na beira das calçadas. As pequenas árvores atravessando as ruas e, quando muito compridas, entrando em janelas de prédios. Pisávamos cacos de vidro e telha escondidos na lama e nas poças. Lá longe, as pontas das ondas desenhadas pelo pouco alcance da luz artificial, o mar ainda subia e descia. Subia de novo ameaçadoramente, dizendo que ainda tinha muito mais, e então recuava. Apesar de tamanha desolação, o farol mantido pelos poucos habitantes permanecia imbatível, altivo e imponente, a velha tinta descascada e a ferrugem em seus corrimões eram as rugas de um velho sábio. Ele ainda velava pela segurança de sua jurisdição, sua poderosa luz girava solenemente por sobre a destruição que o cercava. Felizmente, contudo, nenhum morto.
A tempestade fora tão súbita que o primeiro trovão ouvido foi interpretado como o som de um contêiner se desprendendo de um guindaste, apesar de não haver contêineres nem guindastes na ilha. O dia foi todo fustigado pelo sol intenso e em meia hora as nuvens fecharam o céu, as primeiras gotas chegaram na horizontal, carregadas pelo vento. Com o vento, vieram as ondas. Primeiro de longe, brincando, crianças que provocavam, ameaçando fazer alguma traquinagem. Depois vieram determinadas contra nossas débeis muretas. A água verde embranqueceu e subiu, as muretas estremeceram, o rugido foi mais intenso que o dos trovões. Só foi preciso alguns minutos para que as barreiras começassem a perder reboco e depois tijolos, o primeiro buraco encheu de desespero os ilhados e a água invadiu. Arrebentando asfalto do chão, levantando raízes e abaixando copas, castigando o vidro das janelas, batendo às portas e entrando pelas beiradas. E tão rápido quanto a viração do dia quente para a tempestade, virou a tempestade para a noite quente. O dia fora quente e a noite agora mantinha o legado.
- Não temos condições de continuar aqui, o gerador não pode ficar tanto tempo funcionando, é velho. Vai levar muito tempo para fazer funcionar de novo o outro gerador, que foi inundado. Precisamos contatar o continente pra mandar uma outra equipe. – disse o mecânico da ilha. Saliente-se: mecânico, pedreiro, metalúrgico, técnico de refrigeração...
- A cozinha está destruída, a janta tá toda no meio da lama no chão, e o ralo entupiu. Só sobrou o que tinha nas frigoríficas, hoje ninguém janta. – disse o cozinheiro. Só isso mesmo.
Todos murmuraram em desacordo, era claro que ninguém queria, além da devastação, a desgraça de dormir sem jantar. Estávamos no segundo andar do prédio onde funcionavam auditórios, um pequeno escritório e os laboratórios recentemente improvisados dos pesquisadores. Um dos poucos lugares que tinham permanecido intactos, junto com os alojamentos, felizmente.
- E se o gerador der problema, não é melhor você começar a dar jeito no outro? – disse uma pesquisadora preocupada com organismos microscópicos que mantinha vivos numa câmara refrigerada, que funcionava a eletricidade.
- Não tem nem bananas? – perguntou alguém a quem não foi dada atenção.
- Como vamos chamar outra equipe se a antena do rádio caiu? – disse o responsável pela eletricidade e pelos sistemas de comunicação.
- Como caiu se fica na laje? Que onda é essa? – disse outro pesquisador.
- O rádio fica no outro prédio, mas a antena ficava aqui em cima que é mais alto. Uma árvore tombou e saiu arrebentando o cabo, e puxou a antena junto. – explicou o técnico.
- E você não pode consertar? – disse o cozinheiro.
- Posso sim, se você encontrar o cabo no meio da lama pra mim.
- Ah, mas isso é responsabilidade tua! – rebateu o cozinheiro, talvez sem perceber a ironia.
Enquanto isso, eu, o cara que estava ali só para fotografar uma queda de meteoritos, tarefa sugerida por um amigo astrônomo, estava à janela olhando a escuridão. Alheio às discussões e divergências de uma equipe da qual eu não fazia parte, onde eu não tinha voz nem dever, apenas o dever do “obrigado pela gentileza e hospitalidade” quando viesse o barco me buscar no dia seguinte. A câmera pendurada ao meu pescoço só tinha as fotos da tempestade e da destruição, nenhum meteorito riscando o céu, comoo eu esperava. Frustrado pela súbita tempestade ter-me feito ir ali à toa, eu buscava algo para me livrar dessa angústia do isolamento e da falta de conforto, e o buscava olhando a destruição pela janela. Ali, a poucos metros da entrada do prédio, vi o homem de mais idade na ilha. Encurvado para o chão, empurrava a lama com uma vassoura e cantarolava uma canção que eu nunca tinha escutado. Em meio a tanta agitação, achei interessante o cantarolar daquele homem. Se ele estava mesmo disposto a limpar a lama, ia levar um tempo absurdo e ter um trabalho gigantesco, principalmente em vista do pequeno círculo que ele já limpara comparado à grandiosidade do chão daquela pequena ilha.
- Ei, gente. – chamei. – Olha isso. – vieram dois dos três que me ouviram. Eram pesquisadores, que mais faziam uso dos serviços dos que discutiam.
Ao verem o que eu apontava, disseram:
- Ah, liga não... esse cara é doido.
- É o zelador. Até trabalha bem, mas é meio estranho.
E os dois se afastaram da janela. Olhei para trás, os ânimos ferviam cada vez mais, e vi que achava o cantarolar daquele velho zelador muito mais interessante do que os mantenedores da ilha iriam decidir. Com rádio ou não, eu estaria fora da ilha de manhã. Se não jantasse hoje, pelo menos eu estaria no continente a tempo de almoçar no hotel. Nada daquilo me interessava, mas o velho zelador me deixou curioso e até feliz por ver algo diferente. Eu abominava aquele calor, aquela sensação de isolamento, aquele gosto de sonho desagradável, aquele incômodo estupor de realidade questionável, e vi que o zelador era minha salvação para aquela agonia.
Desci, sem ser visto por ninguém. Pelo tom das vozes, alguém seria agredido em pouco tempo. Encontrei uma outra vassoura e me aproximei do zelador. Aproveitei enquanto estava distraído e tirei uma foto. Ele me recebeu com um sorriso de satisfação, me viu abaixando a câmera e segurando determinadamente a vassoura. Não disse nada, apenas me apontou para que direção limparíamos a rua. A intenção era clarear a área que ia da frente do prédio até onde uma árvore caída atravessava a rua. E apreciei de perto o cantarolar macio e grave, esbanjante de alguma alegria antiga que devia ter sido muito boa para durar até ali, uma armadura para as intempéries que poucos tinham. O trabalho era cansativo, mas tendo apenas um terço da idade do meu companheiro de faxina, me empenhei ao máximo para não fraquejar. Por fim, chegamos à árvore e ele parou, abanando o calor e pingando de suor.
- O senhor não viu o que estão discutindo lá em cima? Dizendo que não podem mais manter a ilha depois disso?
- Ouvi por alto, quando o mecânico chamou todo mundo pra reunião. – sua voz era melodiosa e dava vontade de sorrir.
- Então por que o senhor tá se esforçando tanto?
- Meu filho, é uma pena se eles acham que não dá pra fazer a tarefa deles. Eu acho que ainda dá pra fazer a minha, e to fazendo.
Eu ri. Pegamos a vassoura e continuamos limpando.


Anderson Câmara
31/10/2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Na Pandora.

O blog da Pandora Fairel auxilia escritores jovens e iniciantes, e jovens iniciantes, a sanarem suas dúvidas a respeito do enorme trabalho que é publicar e escrever.
Além de ótimas resenhas de livros e relatos sobre o próprio processo de criação (Pandora, é claro, é escritora), o blog está abrindo o Quadro do Autor Nacional, no qual tive a honra de ceder um poema para a estréia.
\o/




Não faço propaganda exatamente do tal poema, o blog em si é imensamente proveitoso e divertido, e com um design consideravelmente melhor que esse aqui. rs

Confira no link abaixo:

http://pandorafairel.com/2014/10/21/quadro-do-autor-nacional-perdido-no-aroma-da-flor-poema-de-anderson-camara/

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

(mais) Um rápido pensamento sobre a futilidade humana e seus jornais. (crônica)



Lá pra 1870, lia-se nos jornais uma humanidade com as mesmas crueldades e ridicularidades de sempre, mas uma sociedade diferente. É evidente que os jornais exprimem a sociedade de suas épocas, e em 1870 via-se uma humanidade egoísta e vil, que busca os próprios interesses e pisa no semelhante para alcançar seja lá o que queira. Os “classificados” da época anunciavam vendas de escravos, humanos como mercadoria, e exaltavam os latifundiários, que matavam por uma porção de terra que nem usariam.
Algumas décadas à frente, os jornais já não falavam de Reinado ou escravos. A humanidade evoluía rápido. A física avançava, a indústria crescia, os sobrados viravam prédios. Contudo, a escravidão permaneceu disfarçada, os operários e soldados pouco recebiam pelo que muito faziam, e pouco viviam para o que muito trabalhavam. A humanidade evoluiu mais, os direitos trabalhistas vieram assentar a poeira levantada por essa nova forma de conduzir o mundo. Mas ainda o ser humano era visto como mercadoria para aqueles que muito possuíam. Já matava-se por uns dinheiros que permitiriam um torpor que levaria os esquecidos a esquecer o peso da sola que tinham neles pisado.
Preferiu-se o lucro à sustentabilidade e logo os jornais começaram a falar de clima, de água, de lixo. A humanidade crescia, e não havia mais quem a ensinasse a trocar as próprias fraldas, e quanta fralda, meu Deus!
Fruto dos primeiros a evoluir? Ou frutos dos que apenas copiavam a busca pela própria tranquilidade, conforto e boa posição e não souberam, ou não quiseram, evoluir?
Daí, os jornais descortinaram a completa futilidade humana. Não se lia mais sobre avanços da ciência, mas sobre a patética trajetória da moça seminua da capa, encimada por uma manchete que era uma frase de duplo sentido a letras garrafais.
“VENHA, OLHE ESSA BUNDA, LIBERTE SEU INSTINTO, COMPRE E ME DÊ DINHEIRO”
E como acumulam-se e somam-se cada vez mais as notícias de morte, e roubo, e estupro, e escândalos, e banalização da vulgaridade e sodomia, além da falta de soluções para os problemas gerados pela sociedade que não aprendeu a evoluir, a forma de vender sem ser repetitivo, como os jornais têm (superficialmente) se tornado nos últimos vinte anos, é tratando disso com deboche. Por que, além da moça que vende a própria imagem na capa feito doce de vitrine de padaria, o leitor pode também rir da prisão de algum pedófilo, de um assassinato dum bandido... Aliás, editores e redatores de meio real, sejam gratos aos pedófilos e bandidos, o que venderiam sem eles e as bundas?
Ah, sim. Evoluímos, claro. Agora temos telefone, televisão, internet, correio, câmera, jogos, rádio, toca discos, tudo num aparelho menor que um cartão de aniversário. “Veio aqui em casa só pra me falar isso? Podia ter mandado mensagem não?” É... evoluímos.
No fim das contas, foi sempre por dinheiro. Vende-se de tudo, até barato, enriquecendo um e outro enquanto pagamos quase dez reais numa bebida que faz mal. Enfraquecem-se os ossos, esvazia-se a carteira e mantém-se o império de alguma meia-dúzia de ricos associados.
E dessa forma, diferente dos poderosos que pagavam pelos escravos, a humanidade que sustenta esses magnatas acaba pagando pela própria escravidão. Seja por uma TV que pifa em poucos anos para que se compre outra, seja em mover-se pelos instintos reprodutivos, seja pelo incompreensível prazer no vício das telinhas de LED que dispensam sorrisos e apertos de mão nas “relações” humanas.
E os jornais mostram que quanto mais o humano tenta ser grandioso, mais ele prova ser fútil.

Anderson Câmara
25/09/2014

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Vida é Poesia (uns versos)

A vida é poesia
Por Deus escrita
que todos leem depressa
e poucos veem que passa

De leve tangem suas rimas
como crianças à corda de violão
Mas o poeta é quem grita:
"Aprendam a tocar uma canção!"

Anderson Câmara

domingo, 19 de outubro de 2014

Fotografia também é Arte, né? (de um amador com um celular metido a fotógrafo...)



Tem bicho mais elegante que o pavão?


Duas cores. (desenho)



Deste belo quadro pintado pelo Criador chamado Natureza,
as duas figuras que mais se destacam em beleza,
ou pela dependência que por elas têm a própria vida,
são a árvore e a mulher.