O Cantarolar do Zelador
Era uma noite quente, a sensação de quando se andava
através do ar úmido e abafado era a de estar atravessando o sopro de uma boca,
por mais bizarro que isso possa soar. Parecia que a escuridão do céu estava
mais densa, parecia que o negrume da noite descia do alto e comia as beiradas
da luz dos postes. Não se via estrela, ou forma de nuvem, apenas o manto negro.
Por ser uma ilha, o isolamento trazia a impressão de termos sidos pinçados da
malha da realidade e então despejados em algum recipiente de dimensão
alternativa. E aquela sensação, a repugnância pela luz artificial que rodeava
por todo lado, o desejo inconcebível de estar em outro lugar, de sentir
qualquer coisa minimamente confortável.
Fora isso, havia a destruição. A lama, as algas carregadas,
os peixes mortos na beira das calçadas. As pequenas árvores atravessando as
ruas e, quando muito compridas, entrando em janelas de prédios. Pisávamos cacos
de vidro e telha escondidos na lama e nas poças. Lá longe, as pontas das ondas
desenhadas pelo pouco alcance da luz artificial, o mar ainda subia e descia.
Subia de novo ameaçadoramente, dizendo que ainda tinha muito mais, e então
recuava. Apesar de tamanha desolação, o farol mantido pelos poucos habitantes permanecia
imbatível, altivo e imponente, a velha tinta descascada e a ferrugem em seus
corrimões eram as rugas de um velho sábio. Ele ainda velava pela segurança de
sua jurisdição, sua poderosa luz girava solenemente por sobre a destruição que
o cercava. Felizmente, contudo, nenhum morto.
A tempestade fora tão súbita que o primeiro trovão ouvido
foi interpretado como o som de um contêiner se desprendendo de um guindaste,
apesar de não haver contêineres nem guindastes na ilha. O dia foi todo
fustigado pelo sol intenso e em meia hora as nuvens fecharam o céu, as
primeiras gotas chegaram na horizontal, carregadas pelo vento. Com o vento,
vieram as ondas. Primeiro de longe, brincando, crianças que provocavam,
ameaçando fazer alguma traquinagem. Depois vieram determinadas contra nossas
débeis muretas. A água verde embranqueceu e subiu, as muretas estremeceram, o
rugido foi mais intenso que o dos trovões. Só foi preciso alguns minutos para
que as barreiras começassem a perder reboco e depois tijolos, o primeiro buraco
encheu de desespero os ilhados e a água invadiu. Arrebentando asfalto do chão,
levantando raízes e abaixando copas, castigando o vidro das janelas, batendo às
portas e entrando pelas beiradas. E tão rápido quanto a viração do dia quente
para a tempestade, virou a tempestade para a noite quente. O dia fora quente e
a noite agora mantinha o legado.
- Não temos condições de continuar aqui, o gerador não pode
ficar tanto tempo funcionando, é velho. Vai levar muito tempo para fazer
funcionar de novo o outro gerador, que foi inundado. Precisamos contatar o
continente pra mandar uma outra equipe. – disse o mecânico da ilha.
Saliente-se: mecânico, pedreiro, metalúrgico, técnico de refrigeração...
- A cozinha está destruída, a janta tá toda no meio da lama
no chão, e o ralo entupiu. Só sobrou o que tinha nas frigoríficas, hoje ninguém
janta. – disse o cozinheiro. Só isso mesmo.
Todos murmuraram em desacordo, era claro que ninguém
queria, além da devastação, a desgraça de dormir sem jantar. Estávamos no
segundo andar do prédio onde funcionavam auditórios, um pequeno escritório e os
laboratórios recentemente improvisados dos pesquisadores. Um dos poucos lugares
que tinham permanecido intactos, junto com os alojamentos, felizmente.
- E se o gerador der problema, não é melhor você começar a
dar jeito no outro? – disse uma pesquisadora preocupada com organismos
microscópicos que mantinha vivos numa câmara refrigerada, que funcionava a
eletricidade.
- Não tem nem bananas? – perguntou alguém a quem não foi
dada atenção.
- Como vamos chamar outra equipe se a antena do rádio caiu?
– disse o responsável pela eletricidade e pelos sistemas de comunicação.
- Como caiu se fica na laje? Que onda é essa? – disse outro
pesquisador.
- O rádio fica no outro prédio, mas a antena ficava aqui em
cima que é mais alto. Uma árvore tombou e saiu arrebentando o cabo, e puxou a
antena junto. – explicou o técnico.
- E você não pode consertar? – disse o cozinheiro.
- Posso sim, se você encontrar o cabo no meio da lama pra
mim.
- Ah, mas isso é responsabilidade tua! – rebateu o
cozinheiro, talvez sem perceber a ironia.
Enquanto isso, eu, o cara que estava ali só para fotografar
uma queda de meteoritos, tarefa sugerida por um amigo astrônomo, estava à
janela olhando a escuridão. Alheio às discussões e divergências de uma equipe da
qual eu não fazia parte, onde eu não tinha voz nem dever, apenas o dever do
“obrigado pela gentileza e hospitalidade” quando viesse o barco me buscar no
dia seguinte. A câmera pendurada ao meu pescoço só tinha as fotos da tempestade
e da destruição, nenhum meteorito riscando o céu, comoo eu esperava. Frustrado
pela súbita tempestade ter-me feito ir ali à toa, eu buscava algo para me
livrar dessa angústia do isolamento e da falta de conforto, e o buscava olhando
a destruição pela janela. Ali, a poucos metros da entrada do prédio, vi o homem
de mais idade na ilha. Encurvado para o chão, empurrava a lama com uma vassoura
e cantarolava uma canção que eu nunca tinha escutado. Em meio a tanta agitação,
achei interessante o cantarolar daquele homem. Se ele estava mesmo disposto a
limpar a lama, ia levar um tempo absurdo e ter um trabalho gigantesco,
principalmente em vista do pequeno círculo que ele já limpara comparado à
grandiosidade do chão daquela pequena ilha.
- Ei, gente. – chamei. – Olha isso. – vieram dois dos três
que me ouviram. Eram pesquisadores, que mais faziam uso dos serviços dos que
discutiam.
Ao verem o que eu apontava, disseram:
- Ah, liga não... esse cara é doido.
- É o zelador. Até trabalha bem, mas é meio estranho.
E os dois se afastaram da janela. Olhei para trás, os
ânimos ferviam cada vez mais, e vi que achava o cantarolar daquele velho
zelador muito mais interessante do que os mantenedores da ilha iriam decidir.
Com rádio ou não, eu estaria fora da ilha de manhã. Se não jantasse hoje, pelo
menos eu estaria no continente a tempo de almoçar no hotel. Nada daquilo me
interessava, mas o velho zelador me deixou curioso e até feliz por ver algo
diferente. Eu abominava aquele calor, aquela sensação de isolamento, aquele
gosto de sonho desagradável, aquele incômodo estupor de realidade questionável,
e vi que o zelador era minha salvação para aquela agonia.
Desci, sem ser visto por ninguém. Pelo tom das vozes,
alguém seria agredido em pouco tempo. Encontrei uma outra vassoura e me aproximei
do zelador. Aproveitei enquanto estava distraído e tirei uma foto. Ele me
recebeu com um sorriso de satisfação, me viu abaixando a câmera e segurando
determinadamente a vassoura. Não disse nada, apenas me apontou para que direção
limparíamos a rua. A intenção era clarear a área que ia da frente do prédio até
onde uma árvore caída atravessava a rua. E apreciei de perto o cantarolar macio
e grave, esbanjante de alguma alegria antiga que devia ter sido muito boa para
durar até ali, uma armadura para as intempéries que poucos tinham. O trabalho
era cansativo, mas tendo apenas um terço da idade do meu companheiro de faxina,
me empenhei ao máximo para não fraquejar. Por fim, chegamos à árvore e ele
parou, abanando o calor e pingando de suor.
- O senhor não viu o que estão discutindo lá em cima?
Dizendo que não podem mais manter a ilha depois disso?
- Ouvi por alto, quando o mecânico chamou todo mundo pra
reunião. – sua voz era melodiosa e dava vontade de sorrir.
- Então por que o senhor tá se esforçando tanto?
- Meu filho, é uma pena se eles acham que não dá pra fazer
a tarefa deles. Eu acho que ainda dá pra fazer a minha, e to fazendo.
Eu ri. Pegamos a vassoura e continuamos limpando.
Anderson Câmara
31/10/2014