Duas coisas o fizeram despertar: o sol que incidia sobre ele
e o incômodo de estar deitado sobre uma superfície rígida. Ele abriu os olhos
semicerrados e viu um céu claro, azul e cheio de belas nuvens brancas. Se
levantou, pondo-se sentado.
Sabe quando dormimos na casa de um amigo e acordamos
confusos, estranhando o lugar e meio que sem saber como chegamos lá? Ele teve
esta sensação de uma forma aterradora quando se viu numa canoa balançando no
meio do mar. Dormira no fundo do pequeno barco e flutuava sozinho, cercado de
horizontes iguais. Água para todos os lados em que olhava.
Antes de se desesperar ele se lembrou de como viera parar
ali. Era uma pequena canoa de pescador, que seu pai usava para pescar numa
pequena lagoa que tinha uma abertura para o mar. Lembrava-se de estar na casa
de veraneio da família, com seus pais e irmãos, e de ter ido, no fim da tarde,
pegar um peixe para a janta. Pegara o peixe e o levara para casa, e resolvera
se deitar na canoa para cochilar enquanto a janta não saía.
- Não devo ter dado direito o nó. – disse ele quando viu a
corda mergulhada na água ainda amarrada à proa da embarcação.
Aí sim, veio o desespero.
- Meu Deus! – ele exclamou levando as mãos à cabeça. Olhou
para todas as direções buscando algum detalhe antes desapercebido na paisagem,
como a massa escura da terra no horizonte ou alguma outra embarcação, mas só
havia água, tocando o céu azul para onde quer que olhasse.
Sentiu seu coração batendo forte, suava e tremia, respirando
pesadamente.
- Meu Deus, como isso aconteceu? O que eu vou fazer agora?
Pôs- se de pé na canoa e esta quase emborcou. Era uma
embarcação pequena e instável. A angústia ao pensar em histórias de homens que
sumiram no mar o invadiu, o medo de se tornar mais uma dessas histórias o subjugou
e ele se lançou novamente no fundo frio da canoa, sentado, as mãos segurando
com força as duas bordas.
Pensou em sua família, sabia que seus pais estariam
desesperados como ele diante do desaparecimento de seu filho. A pequena vila
devia estar sob um total alvoroço, e provavelmente muitos pescadores se
lançariam ao mar a fim de procurá-lo, pensou ele, não deviam demorar para
encontra-lo.
Pensou, mas logo notou que era a coisa mais confortável de
pensar. Sabia que era uma possibilidade bem possível, mas se surpreendeu ao ver
como sua mente se satisfazia com simples ilusões.
Ouvira o caso de um grupo de pescadores que ficou muitos
dias à deriva por que seu motor falhara, foram encontrados por um navio
mercante a setecentas milhas da costa. Um barco grande, com mastro e bandeiras,
e uma tripulação eficiente, passaram um mês no mar, a meio Brasil de distância
da cidade de onde tinham saído. O que dizer de um jovem pedreiro dentro de uma
minúscula e insignificante canoa? Tudo o que tinha era uma caixa com anzóis e
um rolo de linha.
Desejou, tal qual uma criança assustada, estar com sua
família. O firme e seguro chão da sala e as vozes de seus irmãos mais novos.
Era onde se sentia completo, no seio de sua família, as únicas pessoas da Terra
que fariam tudo por ele sem se incomodar com esforços.
No meio de seus vislumbres de miséria ele se entristeceu
muito pensando em sua bela e simpática, carinhosa e sábia namorada. A quem
pretendia propor casamento no fim daquele ano, durante as festas. Ao ver a
possibilidade de não sobreviver àquela situação, a amargura pousou nele como um
agourento abutre que aguarda a morte de uma presa que definha.
No emaranhado de pensamentos, emoções e sentimentos daquele
jovem não se encontrava nada mais deplorável e lamentável que a ideia de não se
casar com a moça, de nunca mais poder olhar seu sorriso e segurar suas mãos. De
nunca mais abraça-la com a certeza de que era capaz de enfrentar tudo para
protegê-la e já não mais encontrar refúgio naqueles olhos cheios de amor.
- Ela é tudo pra mim, meu Deus.
Depois do desespero e das lágrimas as emoções apaziguaram-se
e o jovem percebeu que tinha fome e sede. Também não havia como se proteger do
sol castigador, e nem alguma maneira de hidratar-se. Com o sol a pino ele se
deitou no fundo da canoa, sentindo um nó na garganta, e estendeu sua camisa
aberta sobre os lados estreitos da proa.
Sob a tenda improvisada, a sensação de queimação da pele,
acentuada pela maresia, era aliviada, mas o brilho ofuscante do meio dia
transpassava o tecido fino. O ar estava quente ali embaixo, e ele sentiu-se
novamente tomado pelo terror quando percebeu que não duraria metade de um mês
naquelas condições. Ou nem uma semana.
Depois de chorar por quase uma hora, bebendo suas próprias
lágrimas débeis, ele adormeceu. Não dormiu, na verdade. Apenas aquele estado
semiconsciente em que temos percepções bem nítidas do que acontece no real e no
irreal, em que os elementos destes dois mundos se misturam.
Ele não soube exatamente o que o fez despertar, se foi o
muito alto rugido do seu estômago ou a percepção que lhe surgiu abruptamente.
- Eu tenho remos! – ele gritou arrancando a tenda e
apanhando dois pequenos remos no fundo da canoa.
Encaixou-os nos suportes e se entregou ao impetuoso esforço.
O ânimo o fazia sorrir, ou talvez sorrisse por se sentir estúpido. Como não se
lembrara antes? E ele remava bem, a água quase não se agitava e a canoa
deslizava pelas águas tranquilas.
Durou pouco, a euforia, pois logo ele se deu conta de que
não tinha ideia de para que direção devia remar. Podia estar se aproximando da
costa ou inutilmente estar aproado para a África. Não sabia se remando para
onde o sol se punha chegaria realmente a algum lugar, pois seria inútil remar
preso a uma corrente marítima.
O sorriso desapareceu e os braços pesaram. Largou os remos e
se jogou novamente no fundo da canoa. Queria muito, como qualquer um, que fosse
encontrado, que estivesse vivo quando o encontrassem, mas naquele momento, não
se importou.
Novamente durou pouco. Quando a fome chegou outra vez, percebeu
que não estava desolado a ponto de suportar aquilo até morrer.
- Preciso voltar vivo para ela, ela é tudo pra mim. – disse
ele quando decidiu ficar com os olhos no horizonte que o cercava, buscando
avistar qualquer coisa.
Então três palavras surgiram na sua mente, mais firmes que
seus próprios pensamentos:
“Minha graça te basta.”
Sentiu-se acordado, como se mergulhasse na água fria, e ao
mesmo tempo, constrangido. As palavras ecoavam dentro dele, e ele se escondeu
novamente sob a tenda improvisada.
Desespero, lamentos, euforia e decepção, então, tédio. Já
estava exausto tanto esperar, dormir e acordar, sentir fome, cansar-se da fome,
chorar, pensar freneticamente, cansar de pensar e finalmente se levantou do
fundo da canoa.
Se colocou de pé, numa postura que equilibrava seu peso para
os dois bordos da canoa. A noite brotava no leste e o dia resistia às costas do
jovem. O sol partia e ele estava diante de um desafio totalmente adverso que
ele nem imaginava que estivesse para encarar: o frio da noite.
Ainda de pé, observando o gradativo escurecer do céu, vestiu
a camisa. Uma luz brilhou no centro da jovem noite que vinha do oeste, ínfima,
minúscula, o bastante para ser identificada como uma estrela. Mas ficou claro
para o desolado e esperançoso jovem que não era uma estrela, estrelas não se
movem lentamente junto à linha do horizonte.
- Ei! – gritou ele com os braços para o alto, sem se
importar com o fato de que ninguém ouviria o grito, e sem saber que o sol se
punha às suas costas e seria impossível que alguém no navio o enxergasse.
Tirou a camisa com tanta pressa que arrebentou dois botões,
gritou com tanta força que sentiu gosto de sangue, agitou-se tanto, balançando
a camisa sobre a cabeça, que se desequilibrou e caiu na água.
Era frio, mas ele permaneceu ali por uns segundos. A
sensação de estar suspenso na água o confortava, o frio o dominou bem rápido, e
quando seus pulmões clamaram pelo ar, ele emergiu e fez mais esforço do que um
dia fora necessário para subir ao barco outra vez.
Enrolado na camisa molhada, encolhido no fundo da canoa, ele
chorou. Não um choro de medo ou desespero, como antes, mas um choro que era
preenchido de angústia, decepção e revolta. Pela primeira vez naquele momento
ele viu como era fraco. A fome apertou-lhe as entranhas.
- Deus, me ajude.
Acordou com o som de batidas secas na madeira da canoa. Era
de manhã, uma manhã fria e com muitas nuvens, o sol parecia ainda não ter
surgido. Ele se sentou na canoa e olhou pela borda. Não acreditou quando viu um
coco grande e verde boiando a um metro da canoa. Olhou ao redor, mas não havia
terra visível. Se inclinou para fora da canoa, tendo o cuidado de não virar, e
apanhou o coco com as duas mãos.
No momento em que se sentou, foi tomado por uma alegria
calada, era grande mas não o bastante para vencer o desgaste do seu corpo. A
pele queimada de sol adia e o estômago grunhia. Ao procurar uma maneira de
abri-lo, lembrou-se da caixa de anzóis que ele deixara na popa. Abriu-a e viu
um rolo de linha, três anzóis e uma faca.
Foi difícil manter o controle enquanto abria o coco,
controle para não se cortar tamanha era a maneira como suas mãos tremiam. Por
fim, conseguiu extrair a pequena bola marrom e peluda dali de dentro, beber a
água por um dos buracos naturais que havia ali, que lhe desceu com um frescor
revigorante, e comer a massa branca e gordurosa que havia no interior. O sabor
mais doce e agradável que já experimentara na vida.
- Obrigado, meu Deus. – disse ele ainda com fome, mas
sabendo que não morreria.
Ao meio dia ajuntavam-se nuvens cinzentas cobrindo o sol e
uma chuva fina caiu sobre a canoa. O mar permaneceu quieto, apesar da chuva, e
o jovem usou os dois lado do coco vazio para recolher a água e beber. Bebeu até
fartar-se da água e passou a usar a chuva para se lavar do sal que queimava sua
pele. Após alguns minutos a chuva cessou e as nuvens se dissiparam. O jovem se
deitou na canoa com um largo sorriso no rosto e exclamou mais uma vez.
- Obrigado, meu Senhor.
Depois disso ele se sentou à popa e cantou uma antiga música
que basicamente dizia que Deus é grande e fiel. Enquanto cantava, teve paz.
Tinha sim consciência da situação em que estava, mas estava feliz.
Passou metade daquela tarde sentado e de boca fechada.
Quando a abriu, foi para bocejar, ele notou que sentia falta de falar.
Lembrou-se das edificantes conversas com seu pai, aprendendo sobre a vida, e
das brincadeiras com seus irmãos adolescentes. Se sentiu sozinho, de repente,
de uma vez só a falta que aquelas pessoas faziam para ele caiu com peso. Voltou
a pensar em nunca mais voltar, e é claro que pensou nela.
Sentia como se fosse impossível viver longe dela, sem ela, e
foi tomado por uma urgência, necessidade, de voltar para casa. Sentiu, então,
raiva. Raiva por ter sido tão idiota de ter ido parar ali, raiva de toda aquela
água que o impedia de chegar até sua amada.
E mais raiva ainda por não poder fazer nada.
Pouco antes do anoitecer ele sentiu fome outra vez e decidiu
controlar os ânimos para usar a linha e os anzóis. Um deles tinha o formato de
um pequeno peixe colorido. Ele sabia fazer aquilo, mas não tinha vara de pesca,
então resolveu segurar a linha com as mãos.
Enquanto esperava com fome e paciência, sua mente trouxe-lhe
à memória a história de um homem chamado Santiago, que pegara um peixe tão
grande quanto seu barco apenas com uma linha e anzol. Só não tinha certeza se
era algum velho da vila ou o conto de um livro na casa de sua avó.
Estava pensando na moça quando o sol tocou a água e um peixe
abocanhou a linha. O rapaz foi pego de surpresa e a linha correu queimando sua
mão. Ele segurou firme com as duas mãos, mas o peixe foi mais forte e o jovem
caiu com o peito na borda da canoa. Enquanto se recuperava da dor, o peixe
mergulhou nas profundezas escuras e levou toda a pouca linha que ele tinha.
Estarrecido, ele se pôs de pé e gritou, incrédulo,
revoltado, e como quase caiu, voltou a se sentar.
- Queria estar em casa, queria estar com ela.
Seu estômago roncou alto e ele voltou a chorar, enquanto via
o sol se pôr numa beleza que o rapaz não estava capaz de apreciar.
- O que eu faço, meu Deus?
De olhos fechados, enxugando as lágrimas que não paravam de
descer ele repetia em sua mente as palavras que dissera em voz alta, quando um
som estranho foi acompanhado de um leve tremor no barco.
Ainda mais surpreso que quando o coco surgira boiando ao
redor da canoa, o jovem ficou ao ver um peixe no barco.
Pequeno e cinzento, de corpo esguio.
Enquanto ainda olhava, outro peixe saltou de dentro da água
para dentro do barco e o jovem se assustou.
Cinco minutos depois ele, sorrindo e chorando ao mesmo
tempo, pegou os dois peixes. Usou a faca para tirar suas nadadeiras e vísceras
e comeu a carne crua. A fome satisfeita, ele deitou-se sob as estrelas cantando que Deus é grande e
fiel.
E dessa maneira os dias se passaram. Chovia ao meio dia e
antes de anoitecer, e o jovem bebia água e se banhava, vez ou outra um peixe
pulava dentro do barco. Ele tratava dos peixes e os deixava secar ao sol, a
carne molhada na água do mar ficava salgada quando o sol a secava. O rapaz
agradecia a Deus, e entre uma ou outra lágrima, cantava.
Ele se ocupou de marcar os dias e as horas, e mais ou menos
no décimo dia os peixes e a chuva se tornaram meio que banais. Não percebia,
mas às vezes não se lembrava de agradecer.
Se lembrava muito da moça, era a maior parte do dia a que
ele gastava pensando nela e dizendo a si mesmo como ela era sua vida e só ela
podia fazê-lo feliz.
Um dia daqueles chegou com um sol violento. O céu se privou
de nuvens, o meio dia foi terrível. Não havia onde se esconder. A sede e a fome
assolavam o jovem. Sentiu raiva daquele céu aberto que já não aguentava mais
olhar, da predominância de azul para todos os lados que olhasse, daquele
balanço débil e terrível da canoa no mar de poucas ondas, do silêncio, da
canoa, da solidão, de como era injusto ele estar ali no meio do nada.
No momento em que pensou isso se sentiu constrangido outra
vez, sabia que seu passado não era muito honroso ou inocente. Mas evitava
pensar nisso.
A tarde acabava, o sol ainda castigava, e nenhum peixe pulava.
Parecia que a fome que sentia agora era maior que antes de
aquilo tudo. Um vento forte começou a soprar e com ele, ondas. Começaram
ignoráveis, eram baixas, mas com o tempo iam sendo capazes de perturbar o
jovem. A fome e o balanço da canoa causavam vertigem no rapaz e ele ficou
sentado na popa reta, imóvel. Por várias horas ele viu a proa dançando na sua
frente, até anoitecer.
Em um momento o balanço causou enjoo, e ele pôs a cabeça
para fora da canoa para vomitar. Mas não tinha nada para vomitar, não comia nem
bebia nada havia quase vinte e quatro horas, ou talvez mais. O resultado foi
uma série de dolorosos espasmos no abdome e uma pressão terrível na cabeça.
Foi aí que ele ergueu a voz, seus pulmões fracos lutando
para que gritasse.
- O que eu fiz? Não sigo você? Há tantos que nem acreditam e
ainda assim vivem bem! Eu estou há mais de dez dias perdido no mar, sem minha
família, o que...
No entanto, antes que suas palavras ficassem piores, uma
súbita onda de dois metros virou a canoa.
O jovem caiu sem noção alguma de onde era a superfície, se
debateu desesperado dentro do frio e da escuridão.
A canoa se fora.
Ele nem sabia para onde nadar.
Se antes não se considerava tendo muito, ele agora nem ar
tinha para respirar. Bebeu água, gritou para ninguém ouvir, tentou abrir os
olhos mas não conseguiu.
“Não te lembras de Jó, que tanto sofreu e não ousou se
levantar contra mim?”
O pensamento surgiu em sua mente com um peso maior que a
água sobre ele.
“E o povo no deserto que tantos milagres e sinais viu, e ainda
assim murmurou. Tuas palavras não se diferem daquele povo rebelde.”
Estava suspenso na escuridão e viu como era fraco e
dependente. Se sentiu outra vez estúpido, dessa vez como um ser insignificante,
berrando contra o pé que pode esmaga-lo com tanta facilidade.
“Não te lembras dos profetas e apóstolos que nada tinham,
nada podiam, mas foram resgatados de prisões, sobreviveram a naufrágios,
perseguições, desertos e animais venenosos? Acaso te esqueces que minha graça
te basta?”
Sentiu então uma perturbação na água ao seu redor, sentiu
algo enlaça-lo na cintura e a superfície apareceu. O jovem emergiu aspirando
todo o ar que podia.
Estava confuso, viu uma espécie de cesto onde foi posto. Viu
luzes ofuscantes e óculos de mergulho. Olhou para o alto, uma enorme massa
escura cobria as estrelas, estava tonto, sentiu seu peso deixando a água.
Deitado, de barriga para cima.
Vozes gritavam ao ritmo em que era içado.
Foi lançado num chão áspero, mas firme.
Mãos quentes tocavam-no, examinando seus olhos, tocando-lhe
o peito, pulso e pescoço e então o jovem desfaleceu.
O Sargento Enfermeiro Paulo tinha visto muitas coisas nos
vinte e cinco anos em que servira à Marinha do Brasil. Ouvira durante aquele
dia os homens das máquinas alvoroçados, parecia que o leme do navio estava
travado e navegaram por horas no mesmo rumo, sem conseguirem reverter a
situação. Estavam já a quase novecentas milhas da costa quando o vigia da proa
avistou uma canoa com um homem sentado. Antes que o navio se aproximasse,
aquela minúscula embarcação virou e os mergulhadores se lançaram na água e
trouxeram o homem para bordo.
Ele passava bem. Sentado numa cadeira, o Sargento observava
o jovem que dormia no leito e dizia repetidamente:
- Obrigado, meu Deus, você é tudo pra mim.
De: Anderson Câmara
De: Anderson Câmara
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