quinta-feira, 3 de julho de 2014

(conto) Coleira e Churrasco

Era uma casa simples e média, num bairro como qualquer outro da baixada fluminense, onde viviam dois pequenos animais domésticos, também simples e típicos. Um deles era um belo gato siamês de cinco anos, olhos azuis, branco. De patas, rabo, focinho e orelhas pretas. As unhas se mantinham afiadas de tanto arranhar o cimento do quintal. Nesses cinco anos nunca tinha pego um rato, mas gostava muito de brincar com insetos, como baratas, e perseguir uns pardais que ainda sobreviviam à urbanização graças a três mangueiras plantadas no quintal de trás.
O outro animal era um cachorro grande, um pastor belga negro e de pelo macio e volumoso. Tinha doze anos e já estava ficando velho, alguns pelos brancos surgiam aos poucos no seu focinho comprido.
Os dois eram os únicos animais daquela casa, e tinham como dona uma senhora amável, cuidadosa e atenciosa. Ela sempre acordava cedo para limpar a sujeira que o gato fazia durante a noite pela casa e a do cão nos fundos do quintal. As tigelas de água e ração estavam sempre limpas, a ração nunca faltava, assim como nunca lhes faltava amor e carinho por parte de sua dona. Ela tinha ficado viúva havia poucos anos, seu esposo era um comerciante local que falecera em paz na sua própria casa, também sempre paciente e atencioso. Naquela época o gato era novo e passava a maior parte do tempo brincando com os objetos da casa e até com o cão. Tinha levado um tempo, mas os animais se acostumaram um ao outro.
Depois que o senhor morrera, a dona ficara menos sorridente, porém igualmente cuidadosa. O cão sempre lhe respondia as carícias na cabeça com um abano de cauda e sempre deitava ao seu lado enquanto ela sentava na poltrona da sala de estar e se lembrava de seu amado companheiro que a tinha deixado. O cão sempre fazia questão de mostrar que ele ainda estava lá com ela, enquanto o gato tirava uma longa soneca. O cão sempre fazia questão de recebê-la com alegria enquanto o gato se esfregava nas suas pernas quando ela reabastecia sua tigela de comida.O cão sempre lhe chamava para brincar no quintal para tirá-la daquela solidão soturna enquanto o gato dormia sobre a geladeira. Quando os filhos da senhora chegavam o cão os recebia com igual alegria, enquanto o gato pulava o muro atrás de uma fêmea ou alguma coisa para comer pelo caminho.
Em um dia de sol a senhora não quis levantar. O cão ficou sentado ao lado da cama com um olhar triste e curtos e agudos uivos, chamando-a para descer e tomar café. Mas ela apenas o olhava com carinho e lhe alisava os pelos entre as orelhas. O gato levantara e descobrira que não havia comida na sua tigela, então pulou o muro. E a senhora ficou lá. Assim como seu cão.
A campainha tocou, o cão partiu, descendo as escadas apressado em direção à porta. Sabia que eram os filhos da dona, e ele tinha que avisá-los. Podia ver seus rostos olhando-o pela grade do portão, e estranhando o comportamento, ele nunca latia daquele jeito quando chegavam. Com muito esforço a dona desceu e atendeu a porta. Os três, sentados aos sofás na sala, conversavam enquanto o cão deitava aos pés da dona.
-Como está a senhora? – perguntou o rapaz.
-Estou bem, querido, não se preocupe.
-Não está, mamãe. A senhora tomou café hoje? – perguntou a moça. A dona desviou os olhos para o cachorro.
-Jantou ontem? – perguntou o rapaz.
-Não, querido. – admitiu ela – Não consigo comer.
A conversa tomou um rumo mais alvoroçado, em que o rapaz mencionava metê-la num carro e levá-la ao hospital mesmo que fosse à força. A irmã o convenceu a deixar a mãe em paz e trazer o médico à casa. E o cão ouvia preocupado, ainda mais preocupado.
A dona passara o dia todo de cama, e não comeu. A filha ficou cuidando dela enquanto o cão tentava consolá-la e não saía do quarto. O médico viria de manhã. À noite a filha adormecera ao lado da mãe e o gato chegou.
-Onde você estava – perguntou o cão – Ela está doente.
-Sério? Quer dizer que ela não encheu minha tigela? – disse o gato. – Ainda bem que já comi um rato na rua.
-Não seja mentiroso. E você devia se importar mais com ela.
-Que isso, os filhos vão nos adotar, não vamos ficar sem donos, sempre tem alguém para cuidar de nós, você não sabe quantas crianças querem me levar para casa.
-Você vai é virar churrasco! – disse o cachorro rosnando e correu atrás do gato, este pulou pela janela direto para o galho de uma das mangueiras.

Pela manhã, antes da filha acordar, antes do médico chegar, a dona se foi. O cão passara a noite inteira sentado ao seu lado, e quando ela partiu ele começou um triste e longo uivo. O gato entrou pela janela.
-Você quer ficar quieto? Eu estava dormindo!
-Ela se foi. – disse o cão com toda sua tristeza.
-Tudo bem, os filhos vão nos adotar.- insistiu impaciente.
O cachorro ignorou e continuou seu lamento. O uivo acordou a filha e quando ela tentou acordar a mãe uniu-se ao luto do cachorro.

Mais tarde vieram buscá-la. O cão ficou o tempo todo deitado ao lado da poltrona, agora vazia enquanto o gato sumia novamente para arrumar alguma coisa para comer. Um dia depois, após o enterro, a filha apareceu na casa e pôs algumas coisas numa caixa e levou para o carro. Roupas, fotografias, e uns objetos de decoração e utensílios de cozinha, enquanto o gato tirava mais uma longa soneca. A filha voltou, pôs uma corrente no pescoço do cão e chamou:
-Vamos, Nicolas.
O cão se levantou, e a passos curtos e lentos, cabeça baixa e orelhas murchas, seguiu a filha da dona até o carro.
Durante a tarde o filho apareceu com um amigo e levou outras coisas. O amigo viu o gato dormindo, falou alguma coisa com o filho da senhora e pegou o gato pelo couro das costas e o enfiou numa gaiola. O gato acordou assustado, mas não pôde fugir. Enquanto saía murmurava consigo mesmo:
-Hoje tem churrasco.



FIM

2 comentários:

  1. Que história triste e bela... Confesso que não entendi o tom da última fala (se era ironia, arrependimento, ingenuidade, enfim)... Ainda assim, foi um dos climas mais bem construídos que já li em contos curtos. Se prestarmos atenção, é a calma da dona que suaviza toda a leitura, que dá cor ao texto. Parabéns e obrigado por compartilhar esse seu talento... :)

    ResponderExcluir
  2. Tenho cachorro e sei que eles são animais extremamente fiéis e devotados, como o conto mostra, mas confesso que fiquei com pena do gato no final, apesar de tudo, rs. Ótimo conto, fluiu super bem e foi muito bem escrito também.

    ResponderExcluir