Sabe com quem está falando?
Jorge da Silva era um
sujeito bastante simpático, adorava ser prestativo com os amigos e se divertir
das mais variadas formas. Tinha uma bela esposa, sete anos mais jovem que ele,
e dois filhos já adultos e mais bem sucedidos que ele, estavam sempre mantendo
contato e suprindo as necessidades que seu pequeno emprego não dava conta.
Irritava-se pouco, mas era daqueles que quando chegava a ponto de ficar
nervoso, era melhor ficar longe.
Seu pequeno emprego era um
tanto estressante, depois de ser sócio de um mercadinho que fechou depois de
uma visita da vigilância sanitária, conseguiu emprego numa agência do Detran.
Óbvio que ali era um lugar frequentado por todas as classes sociais, e isso
gerava alguns transtornos por conta de gente que estava acostumada a ter tudo à
mão e agora tinha que esperar na fila igual a qualquer trabalhador.
Costumava ser um faz tudo
naquela agência, e naquele dia estava suprindo a falta da garota que dava
informações. Mais ou menos ao meio dia chegou na agência um senhor um pouco
mais velho que Jorge, e consideravelmente bem vestido. Observava da porta a
muvuca que enchia o lugar, altivo, o pescoço esticado como para se manter acima
de todos. Arrastou uns sapatos caros até o homem baixinho e barrigudo ao lado
da placa de “informações”.
- Eu quero renovar minha
CNH. – disse.
- Bom dia, senhor... –
começou Jorge com sua fala alegre e cantante, que destoava do visível mau humor
do cliente – Renovação de CNH é na fila do caixa três, não demora muito. É só o
senhor dar o CPF e o boleto pago que eles veem lá o pedido que o senhor fez
pela internet.
A cada passo que descrevia,
o homem subia mais as esparsas sobrancelhas brancas. Ele olhou para a fila,
virando o pescoço bem lentamente, e depois de volta. Então as sobrancelhas já
tinham descido.
- Sabe com quem está
falando?
Desta vez quem subiu a
sobrancelha foi Jorge.
- Me perdoe, senhor, mas não
sei. Antes de vir aqui pegar a CNH o senhor tem que fazer o pedido pela
internet e pagar...
- Você ouviu o que eu disse?
Sabe quem sou eu? – falou mais ríspido e mais alto, chamando a atenção de um
rapaz ali perto que estivera futucando o celular.
- Não, quem é o senhor?
- Sou o secretário de
fazenda desta cidade. Hoje um políciazinho de merda quis me segurar por causa
dessa carteira. Só precisei fazer um telefonema e ele se arrependeu. Quer que
eu faça isso com você?
- Senhor... Se acalme...
- Não me mande ter calma! Eu
sou o secretário de fazenda! – quase gritou.
- O senhor deve fazer o
pedido pela internet.
- Eu sou o secretário de
fazenda, você acha que eu tenho tempo pra ficar perdendo tempo na internet e
indo ao banco?
- Senhor secretário, o
senhor tem trinta dias...
- Ah, de novo essa conversa
de trinta dias!
Jorge sentiu aquela raiva
brotando no interior, mas respirou fundo e disse:
- Certo... O senhor pode me
deixar ver sua Habilitação? Vou levar o caso ao meu superior e ver o que ele
pode fazer.
- Finalmente você entendeu.
– disse o homem apanhando o documento no bolso interno do paletó.
Jorge pôs os óculos de
leitura e verificou que a data de validade da CNH que segurava já tinha sido
ultrapassada em quarenta e três dias.
- Senhor... Sua carteira já
está muito ultrapassada. O senhor vai ter que fazer toda a reciclagem.
- O que? – murmurou o
secretário.
E aquilo fez seu coração se
atiçar de raiva.
- O senhor tem que
frequentar as aulas novamente e fazer as aulas de direção, não dá mais pra
renovar, infelizmente.
O homem fez uma cara de
espanto tão estranha que Jorge quase pensou que ele estivesse passando mal.
Então tomou do celular no bolso da calça e fez uma ligação em sussurros.
- Você vai se arrepender,
vai ver... – disse o secretário sorrindo, então deu as costas e ficou do lado
de fora da agência, olhando a rua.
A raiva de Jorge passou logo
quando começou a atender a fila que se formara. Se distraiu, riu com uns
colegas, até comentou o caso do secretário com uns mais chegados. Sentiu-se
gelar por dentro quando um carro preto acompanhado de uma viatura de polícia
estacionou do outro lado da rua em frente à agência e um homem enorme, de
camisa preta, calça jeans e uma arma na cintura, caminhou até o secretário.
Vieram também dois policiais fardados e o grupo formado na porta entrou.
- É aquele ali. – disse o
Secretário, apontando e fazendo questão de chamar a atenção de todos no
recinto.
O homem armado e à paisana
se aproximou, era maior que os dois policiais que o acompanhavam aos lados.
- Você é que atendeu o
senhor secretário?
- Sim... – disse Jorge,
quase tremendo.
- Você está preso por
desacato a autoridade.
- Que? – disse sem se
conter, rápido como um fósforo se acende, o medo virou raiva e indignação. – Eu
não fiz nada! Tratei ele com todo respeito e dei as informações que precisava!
- Calma, vai poder prestar
depoimento na delegacia. – disse um dos policiais quando os dois o tomaram pelo
braço e empurraram a caminhar.
Jorge empacou feito um burro.
Jorge empacou feito um burro.
- Não vou pra droga de
delegacia nenhuma, isso não é justo. O cara deixou a carteira vencer, não quer
seguir os procedimentos e a culpa é minha?
- Sabe com quem está falando?
– gritou o homenzarrão. – Eu sou o Coronel Ferreira, da Polícia Civil! Você
agora tá preso por desacatar também a mim e por resistir à prisão! – virou-se
para os policiais militares. – Pode algemar ele!
Jorge arregalou os olhos de
incredulidade e espanto e sentiu o queixo tremer de nervosismo, sabia que era o
estágio mais perigoso de sua raiva, e deu graças a Deus por ter sido algemado.
Enquanto era empurrado para
dentro da viatura, viu o supervisor da agência falando com o secretário;
encurvado e sorrindo, só faltava se ajoelhar e beijar o sapato brilhante que
ele calçava.
Jorge não tinha dinheiro
para fiança, mas conseguiu ligar para o filho em Brasília, que ocupava um cargo
público parecido com a figura que o prendia agora. Não conseguiu falar diretamente
com ele, falara com a secretária, e sabia que levaria ainda um tempo para isso.
Foi largado numa cela
quadrada de dois metros por três, com quatro beliches e sete presidiários, além
dele. Viu-se injustamente inserido num ambiente do qual destoava completamente.
Um homem correto, de boas maneiras e bons princípios, no meio de uns que tinham
sido privados da vida pública por não respeitarem a ordem da sociedade. O tempo
todo ficou jogado nas grades, os braços pra fora o máximo possível, evitando se
misturar àquela estirpe o mínimo que fosse.
Num dos beliches se sentava
um homem de uns trinta anos, tão gordo que dava a impressão de escorrer de
sobre si mesmo. Os outros seis homens dirigiam-se a este com respeito e até com
algum temor. Só foi preciso estar na cela por uma tarde para concluir que o
obeso fora o pior dos presos ali, tinha sido acusado de matar o irmão por
algumas gramas de droga. Os demais eram meros assaltantes e ladrões estúpidos e
azarados.
Às sete horas um carcereiro
veio trazer uma janta que, assim como os beliches, não era suficiente para oito
homens; o estado supria o presídio conforme o projeto e não conforme a situação
real. Suspeitou que cada homem fosse comer metade do prato, visto que era uma
cela para quatro preenchida por oito homens. Mas o que viu o deixou estupefato.
Deram um prato inteiro para o gordo somada a uma porção de cada um, deixando para
Jorge um punhado de arroz sujo com caldo de feijão e a parte mais ossuda da
galinha. Nem sequer viu um grão da farofa. Calados, os homens comiam pouco
enquanto o gordo, com modos repugnantes, se fartava.
- Ei, cara... Isso não é
justo. – falou Jorge, irredutível. Imediatamente todos o olharam assustados. – Isso
aqui que me deram não enche nem o buraco do dente!
O homem gordo afastou a
quentinha lotada, encurvou-se para a frente e apoiou as mãos nos joelhos,
aproximando a cara imensa da dele.
- Vem cá... – cuspiu farofa.
– Você sabe com quem está falando?
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