sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Cantarolar do Zelador (conto, ou crônica... sei lá)



O Cantarolar do Zelador

Era uma noite quente, a sensação de quando se andava através do ar úmido e abafado era a de estar atravessando o sopro de uma boca, por mais bizarro que isso possa soar. Parecia que a escuridão do céu estava mais densa, parecia que o negrume da noite descia do alto e comia as beiradas da luz dos postes. Não se via estrela, ou forma de nuvem, apenas o manto negro. Por ser uma ilha, o isolamento trazia a impressão de termos sidos pinçados da malha da realidade e então despejados em algum recipiente de dimensão alternativa. E aquela sensação, a repugnância pela luz artificial que rodeava por todo lado, o desejo inconcebível de estar em outro lugar, de sentir qualquer coisa minimamente confortável.
Fora isso, havia a destruição. A lama, as algas carregadas, os peixes mortos na beira das calçadas. As pequenas árvores atravessando as ruas e, quando muito compridas, entrando em janelas de prédios. Pisávamos cacos de vidro e telha escondidos na lama e nas poças. Lá longe, as pontas das ondas desenhadas pelo pouco alcance da luz artificial, o mar ainda subia e descia. Subia de novo ameaçadoramente, dizendo que ainda tinha muito mais, e então recuava. Apesar de tamanha desolação, o farol mantido pelos poucos habitantes permanecia imbatível, altivo e imponente, a velha tinta descascada e a ferrugem em seus corrimões eram as rugas de um velho sábio. Ele ainda velava pela segurança de sua jurisdição, sua poderosa luz girava solenemente por sobre a destruição que o cercava. Felizmente, contudo, nenhum morto.
A tempestade fora tão súbita que o primeiro trovão ouvido foi interpretado como o som de um contêiner se desprendendo de um guindaste, apesar de não haver contêineres nem guindastes na ilha. O dia foi todo fustigado pelo sol intenso e em meia hora as nuvens fecharam o céu, as primeiras gotas chegaram na horizontal, carregadas pelo vento. Com o vento, vieram as ondas. Primeiro de longe, brincando, crianças que provocavam, ameaçando fazer alguma traquinagem. Depois vieram determinadas contra nossas débeis muretas. A água verde embranqueceu e subiu, as muretas estremeceram, o rugido foi mais intenso que o dos trovões. Só foi preciso alguns minutos para que as barreiras começassem a perder reboco e depois tijolos, o primeiro buraco encheu de desespero os ilhados e a água invadiu. Arrebentando asfalto do chão, levantando raízes e abaixando copas, castigando o vidro das janelas, batendo às portas e entrando pelas beiradas. E tão rápido quanto a viração do dia quente para a tempestade, virou a tempestade para a noite quente. O dia fora quente e a noite agora mantinha o legado.
- Não temos condições de continuar aqui, o gerador não pode ficar tanto tempo funcionando, é velho. Vai levar muito tempo para fazer funcionar de novo o outro gerador, que foi inundado. Precisamos contatar o continente pra mandar uma outra equipe. – disse o mecânico da ilha. Saliente-se: mecânico, pedreiro, metalúrgico, técnico de refrigeração...
- A cozinha está destruída, a janta tá toda no meio da lama no chão, e o ralo entupiu. Só sobrou o que tinha nas frigoríficas, hoje ninguém janta. – disse o cozinheiro. Só isso mesmo.
Todos murmuraram em desacordo, era claro que ninguém queria, além da devastação, a desgraça de dormir sem jantar. Estávamos no segundo andar do prédio onde funcionavam auditórios, um pequeno escritório e os laboratórios recentemente improvisados dos pesquisadores. Um dos poucos lugares que tinham permanecido intactos, junto com os alojamentos, felizmente.
- E se o gerador der problema, não é melhor você começar a dar jeito no outro? – disse uma pesquisadora preocupada com organismos microscópicos que mantinha vivos numa câmara refrigerada, que funcionava a eletricidade.
- Não tem nem bananas? – perguntou alguém a quem não foi dada atenção.
- Como vamos chamar outra equipe se a antena do rádio caiu? – disse o responsável pela eletricidade e pelos sistemas de comunicação.
- Como caiu se fica na laje? Que onda é essa? – disse outro pesquisador.
- O rádio fica no outro prédio, mas a antena ficava aqui em cima que é mais alto. Uma árvore tombou e saiu arrebentando o cabo, e puxou a antena junto. – explicou o técnico.
- E você não pode consertar? – disse o cozinheiro.
- Posso sim, se você encontrar o cabo no meio da lama pra mim.
- Ah, mas isso é responsabilidade tua! – rebateu o cozinheiro, talvez sem perceber a ironia.
Enquanto isso, eu, o cara que estava ali só para fotografar uma queda de meteoritos, tarefa sugerida por um amigo astrônomo, estava à janela olhando a escuridão. Alheio às discussões e divergências de uma equipe da qual eu não fazia parte, onde eu não tinha voz nem dever, apenas o dever do “obrigado pela gentileza e hospitalidade” quando viesse o barco me buscar no dia seguinte. A câmera pendurada ao meu pescoço só tinha as fotos da tempestade e da destruição, nenhum meteorito riscando o céu, comoo eu esperava. Frustrado pela súbita tempestade ter-me feito ir ali à toa, eu buscava algo para me livrar dessa angústia do isolamento e da falta de conforto, e o buscava olhando a destruição pela janela. Ali, a poucos metros da entrada do prédio, vi o homem de mais idade na ilha. Encurvado para o chão, empurrava a lama com uma vassoura e cantarolava uma canção que eu nunca tinha escutado. Em meio a tanta agitação, achei interessante o cantarolar daquele homem. Se ele estava mesmo disposto a limpar a lama, ia levar um tempo absurdo e ter um trabalho gigantesco, principalmente em vista do pequeno círculo que ele já limpara comparado à grandiosidade do chão daquela pequena ilha.
- Ei, gente. – chamei. – Olha isso. – vieram dois dos três que me ouviram. Eram pesquisadores, que mais faziam uso dos serviços dos que discutiam.
Ao verem o que eu apontava, disseram:
- Ah, liga não... esse cara é doido.
- É o zelador. Até trabalha bem, mas é meio estranho.
E os dois se afastaram da janela. Olhei para trás, os ânimos ferviam cada vez mais, e vi que achava o cantarolar daquele velho zelador muito mais interessante do que os mantenedores da ilha iriam decidir. Com rádio ou não, eu estaria fora da ilha de manhã. Se não jantasse hoje, pelo menos eu estaria no continente a tempo de almoçar no hotel. Nada daquilo me interessava, mas o velho zelador me deixou curioso e até feliz por ver algo diferente. Eu abominava aquele calor, aquela sensação de isolamento, aquele gosto de sonho desagradável, aquele incômodo estupor de realidade questionável, e vi que o zelador era minha salvação para aquela agonia.
Desci, sem ser visto por ninguém. Pelo tom das vozes, alguém seria agredido em pouco tempo. Encontrei uma outra vassoura e me aproximei do zelador. Aproveitei enquanto estava distraído e tirei uma foto. Ele me recebeu com um sorriso de satisfação, me viu abaixando a câmera e segurando determinadamente a vassoura. Não disse nada, apenas me apontou para que direção limparíamos a rua. A intenção era clarear a área que ia da frente do prédio até onde uma árvore caída atravessava a rua. E apreciei de perto o cantarolar macio e grave, esbanjante de alguma alegria antiga que devia ter sido muito boa para durar até ali, uma armadura para as intempéries que poucos tinham. O trabalho era cansativo, mas tendo apenas um terço da idade do meu companheiro de faxina, me empenhei ao máximo para não fraquejar. Por fim, chegamos à árvore e ele parou, abanando o calor e pingando de suor.
- O senhor não viu o que estão discutindo lá em cima? Dizendo que não podem mais manter a ilha depois disso?
- Ouvi por alto, quando o mecânico chamou todo mundo pra reunião. – sua voz era melodiosa e dava vontade de sorrir.
- Então por que o senhor tá se esforçando tanto?
- Meu filho, é uma pena se eles acham que não dá pra fazer a tarefa deles. Eu acho que ainda dá pra fazer a minha, e to fazendo.
Eu ri. Pegamos a vassoura e continuamos limpando.


Anderson Câmara
31/10/2014

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